Senhor Enganoso, o personagem central dessa crônica, sempre foi sisudo
e metido a rico. Na sua infância era pobre e vivia numa cidadezinha muito
miserável e feia num dos lugares mais ermos do país.
Naquela época, o angu era seu
alimento preferido. Com os irrisórios lucros de seus pais, a folha de bananeira
ocupava lugar de destaque no banheiro e o caminho à escola era feito com velhas
galochas de borracha por léguas e léguas intermináveis... Daí o fato do Sr.
Enganoso ter abandonado os estudos ainda em tenra idade e ter passado a vida
toda na ignorância mais completa e absoluta que um ser humano pode viver.
Mas o que faltava financeiramente ao
Sr. Enganoso sobrava-lhe de “papo”. Contar vantagens aos colegas e conhecidos
era com ele mesmo! Mentia, mentia e mentia... Todos sabiam que mentia, porém, fingiam
acreditar!
E foi numa dessas mentiras que o Sr.
Enganoso conquistou sua esposa, a Dona Enganada. Essa, também ignorante e
humilde, mas fazia questão de deixar claro qual a sua origem, não tinha
vergonha!
O casal viveu sempre de expedientes
e de pequenos “bicos”. Morava tempos aqui, tempos acolá... Com o passar dos
anos vieram os filhos, muitos filhos...
O Sr. Enganoso, então, decidiu mudar
de Estado com a “cara e a coragem”. Foi assim que o pobre casal e seus filhos
chegaram a São Paulo. Ele sempre bebeu, fumou, traiu a mulher e judiou de seus
filhos, mas a mulher manteve-se fiel a ele todo o tempo!
Nosso personagem nas andanças da
vida aprendeu um rude ofício e melhorou um pouco de vida, ou seja, saiu do
“nada” e chegou ao “quase nada”. Lembra que eu falei no começo da crônica sobre
o “papo” e a mania de grandeza do Sr. Enganoso? Pois bem, isso piorou com o
passar dos anos!
Querendo sair do “quase nada” para o
“alguma coisa”, ele resolveu aplicar “golpes” nas pessoas de bem. Contratava e
não pagava, furtava materiais dos patrões e mentia; mentia compulsivamente a
ponto de todos os seus muitos filhos adotarem suas mentiras e seus golpes. Mas
para disfarçar, freqüentava uma Igreja e apregoava uma fé digna de “levá-lo ao
céu”, como gostava de dizer!
Suas filhas eram “mães solteiras” que
davam os chamados “golpes da barriga”. Já os filhos se apropriavam de materiais
dos patrões “com classe” e lábia, na base do engano sutil.
O Sr. Enganoso devia a mercados de
bairro, agiotas, açougues, farmácias, quitandas e depósitos de materiais de
construção. Chegou determinado dia que ninguém vendia mais nada fiado a ele,
pois todos já conheciam sua reputação de “mau pagador”.
Mas ele só andava de carro preto e
ostentava uma bonita casa na cidade onde morava com sua família. Fazia de conta
que não devia nada a ninguém e continuava a se “esconder” atrás da Igreja que freqüentava.
Um dia, porém, Sr. Enganoso adoeceu
gravemente, enfermidade de morte, pois já era muito idoso!
Sua mulher, Dona Enganada, e seus
filhos ficaram ao seu lado solidários, mas não possuíam recursos para custear o
tratamento do Sr. Enganoso.
O INSS havia cancelado o benefício
dele, pois descobriu-se que o mesmo era produto de estelionato. Dinheiro os
filhos igualmente não tinham, pois não trabalhavam, viviam de pequenos “bicos”
e golpes! Às filhas restava cuidar das crianças que haviam gerado nesses anos,
pois marido algum aguentou a futilidade e as mentiras das moças!
Tentaram comprar remédios fiado nas
farmácias, mas ninguém quis vender nada para a família do Sr. Enganoso. Até que
um dia ele amanheceu morto e seu corpo já cheirava mal por conta da
enfermidade.
Seus familiares procuraram uma
funerária da cidade para fazer o enterro “fiado”, mas nem a morte foi
suficiente para apagar a má reputação do defunto afinal, se vivo ele já não
pagava, depois de morto menos ainda!
Coube recorrer ao prefeito, o qual
prontamente enterrou o morto por conta da prefeitura. E o enterro foi vazio,
pois ninguém na cidade gostava do “finado caloteiro”, como ficou
conhecido.
Os coveiros, contrariados,
depositaram o ataúde no fundo de uma cova rasa, pois até para eles o Sr.
Enganoso morreu devendo dinheiro.
O único que teve um ato pequeno de
misericórdia com o “finado caloteiro”, além do prefeito, foi o administrador do
cemitério que, mesmo tendo levado muitos calotes do morto, preocupou-se em
escrever na sepultura esses ínfimos versos de Drummond como um questionamento
tácito e derradeiro:
“E agora, José?
A festa acabou,
A luz apagou,
O povo sumiu,
A noite esfriou,
E agora, José?
E agora, você?
Você que é sem nome,
Que zomba dos outros,
Você que faz versos,
Que ama, protesta?
E agora, José?”
Para encerrar esse breve relato
sobre a vida do Sr. Enganoso, convido meus leitores a refletirem sobre o
seguinte aforismo de Napoleão Bonaparte:
“Os homens não mudam. Os especuladores desonestos
sempre agirão como agiram no passado!”